quinta-feira, 20 de outubro de 2016

História Arquivada - Julgamento: Yorick
















Candidato: Yorick
Data: 17 de Junho, 21 CLE

OBSERVAÇÃO

Yorick encontra a entrada da montanha após buscar incansavelmente. Ele aprendeu sobre a Liga em fragmentos; a natureza incomum das mortes nos Campos da Justiça o intriga. Ele não tem interesse em jogos ou política, mas um impulso egoísta o compele.

Ele é corcunda, sua estrutura feita para seu propósito, forte. Ele se agarra a uma pá sempre – é isso o que o mantém neste mundo. Ele é ao mesmo tempo aterrorizante e patético, um cadáver envelhecido que não pode descansar. Ele perambula até o espaço designado para seu Julgamento, portas de pedra na beira da montanha. A escuridão o envolve enquanto ele adentra. A cor lhe cai bem.

REFLEXÃO

A escuridão não incomodava a Yorick. Ele passara a maior parte de sua vida na escuridão e, mais significativamente, muitas vidas além.

Uma vida... hmpf. Peles-quente têm escopos tão restritos.

Yorick mal podia se lembrar de seus primeiros anos na Ilha das Sombras, contando diligentemente os dias que passavam, depois meses, depois anos. Quando as paredes internas de sua caverna nada mais eram que uma enxurrada de linhas tortas, ele parou. Contar os dias em morte fazia tanto sentido quanto contar a respiração em vida. Ele brevemente se perguntou quantas vidas teria contado – outro exercício absolutamente inútil.

O chiar de grilos penetrou seus pensamentos. Era o tipo de som que gentilmente emoldurava a contemplação profunda, mas se tornava loucura penetrante se focado; mais vida temendo por sua hora, buscando propósito, como chamas dançando em suas brasas.

O cheiro do solo úmido o saudou como um velho amigo, se esparramando em torno dele. Yorick avaliou seus arredores.

Ele estava entre fileiras de lápides que se estendiam em todas as direções, aparentemente sem fim. Havia uma quietude plena no ar que caracterizava os lugares em que vida e morte se encontram. Era uma qualidade que permeava cada centímetro da Ilha das Sombras, mesmo a vida tendo há muito abandonado seu litoral. Certa vez Yorick refletira que esses jardins de morte fresca eram nós na garganta da existência, rançosos com inquietação enquanto contemplavam seus cruzamentos.

Agora ele simplesmente se perguntava o porquê de haver um cadáver aqui.

O corpo estava colocado em um vagão ao lado de uma lápide nova, mas ainda sem nome. Corpos não o incomodavam – pelo contrário. A possibilidade de conduzir almas pelos muitos degraus da morte era uma das poucas emoções consentidas a um coveiro da Ilha das Sombras. Ao invés disso, era o fato de que corpos mortos (não confunda com corpos mortos-vivos) raramente se apresentavam de forma tão conveniente para o enterro.

Houve um tempo em que Yorick questionaria isso, quando tentaria identificar o cadáver, falar com sua família, assegurar que seu nome e alguma frase pertinente seriam gravados na lápide. Agora ele simplesmente enfiou sua pá no solo, feliz em não mais lidar com o fantasma da curiosidade.

Com cada punhado de terra cavado, Yorick tinha uma sensação crescente de remorso. De certas formas, estava enfeitiçado por ela. Emoções eram a bebida dos vivos. Conforme alguém cruza o terceiro ou quarto século da morte-vida, a lembrança das emoções se torna tão apagada que se pergunta o porquê de tentar lembrar dela. É aí que a desconexão entre os peles-quente e os mortos-vivos acontece. Um coveiro tem horários a manter e os peles-quente são tão delirantemente apegados a suas vidas, mesmo com décadas de preparação para o inevitável. É, afinal, o inevitável.

Yorick tentara chegar a um acordo uma ou duas vezes, enterrando as pessoas vivas para que pudessem saborear suas preciosas vidas até o último instante, mas isso geralmente lhe dava o dobro da dor de cabeça e ninguém nunca apreciava seus esforços.

Ao terminar de abrir a cova, a mente de Yorick se encheu de antecipação sombria. Por motivos que não podia compreender, este enterro significava alguma coisa. Ele simultaneamente desejava que pudesse durar para sempre, e que terminasse logo de uma vez.

Esse último parecia mais prático. Ele lançou o corpo na cova sem cerimônias, depois desceu para cruzar novamente os braços e arrumá-lo com algum semblante de dignidade. Havia algo horripilantemente familiar nele. Todos os rostos que enterrara – os inúmeros rostos – se misturavam a essa altura, por que este era diferente?

Ele escalou para fora do buraco e olhou para baixo uma última vez. Ele não se perguntava sobre a vida de um de seus encargos havia séculos, mas não podia evitar uma sensação de propósito não cumprido radiando deste. No momento em que estava prestes a colocar a terra de volta sobre a cova, ele escorregou. A pá caiu espiralando para dentro do buraco.

Yorick não tinha largado sua pá... nunca. Em pânico, ele foi atrás dela, mas escorregou novamente. O monte de terra ao lado da cova começou a deslizar sozinho, uma avalanche sem provocação. Yorick freneticamente tentou impedi-la, mas ela fluiu por ele sem dificuldades. Ele olhou para baixo e finalmente ele compreendeu.

A pá estava exatamente em cima do corpo, agarrada por seus braços cruzados. O rosto – o rosto que ele deveria ter reconhecido – era o dele mesmo. Era o rosto da inocência, esperança, tristeza. Era um rosto tão no início de sua jornada, já convencido de que vira o fim.

E Yorick sequer o tinha reconhecido.

O solo caía em uma enxurrada agora, cobrindo completamente o corpo, e sumindo com os últimos resquícios de seu rosto. Yorick mergulhou no buraco e começou a rasgar freneticamente a terra. O movimento era estranho; ele estava completamente perdido sem sua pá.

Quando o último grão de solo parou, Yorick estava soterrado até os cotovelos.

Ele não se lembrava de ter sentido nada – muito menos tristeza incessante – de forma tão intensa.

“Por que você quer entrar para a Liga, Yorick?”

Ele olhou para cima. Um homem de robe ali estava, um tipo de mago. O rosto estava coberto.

“Quem é você?” Perguntou Yorick.

“Sou empregado pela Liga das Lendas, é só o que precisa saber.”

“Não me importo com sua Liga agora. Só quero aquele corpo.”

“O corpo não é real. Foi forjado de sua memória. Uma miragem. Normalmente, eu estaria aqui vestindo o rosto de alguém que você conheceu, mas parece que você se esqueceu de todos.”

Yorick pensou nisso. Só podia ser verdade.

“Por que você quer entrar para a Liga?” O homem insistiu.

“Quero fazer... outra coisa. Quero lembrar... e ser lembrado.” Yorick sentiu como se algo guiasse sua língua. Havia água em seu rosto.

O que é isso? O que está acontecendo?

“Podemos lhe dar essa oportunidade, Yorick, mas precisamos saber de algumas coisas sobre você.” A voz nunca hesitou.

“Sobre o quê?”

“Sobre de onde veio.”

“Não lembro.”

“Não onde nasceu. Falo da Ilha das Sombras.” Yorick deixou que as palavras ficassem no ar.

“Tudo bem.”

“Como se sente, expondo sua mente?”

O homem se foi antes que Yorick pudesse responder. Yorick se sentiu verdadeiramente sozinho, porém, em algum lugar à margem de sua consciência, empolgado. Esta Liga das Lendas em breve sentiria o gosto da sedução da morte.

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